Seita religiosa na Espanha rejeita a medicina e defende o castigo físico como forma de educação

Source: Bol Noticias

Juan Diego Quesada

El País

18/03/2009

Eles não mandam os filhos à escola, admitem o castigo físico como uma forma de educá-los, segundo ex-membros, e em muitos casos rejeitam os tratamentos médicos. A comunidade das Doze Tribos, que tenta viver como os cristãos primitivos, se assentou em várias regiões da Espanha

“Eles o manipulam e lavam seu cérebro, sentindo-se que são os eleitos.” É o relato de um ex-membro das Doze Tribos, organização espiritual que tenta viver no estilo dos primeiros cristãos. A Bíblia é o único livro que seus adeptos podem ler, e eles obedecem rigidamente à doutrina de Elbert Spriggs, um americano que se autoproclama apóstolo e diz receber ordens diretas de Yashua (Jesus em hebraico). Os membros têm de abandonar seu trabalho e seus bens para viver em comunidade, afastados da influência “satânica” da sociedade. Não mandam seus filhos à escola e são acusados de bater nos menores com uma vara de madeira.

A Guarda Civil espanhola indica em um relatório que há indícios de que as Doze Tribos são “um grupo de manipulação”. Na Espanha, têm comunidades em Irún e San Sebastián (Guipúzcoa), Pravia (Astúrias) e Nerja (Málaga), onde vivem atualmente cerca de 150 pessoas. No mundo, contam com 3 mil membros em lugares tão diversos quanto Austrália, Argentina e EUA.

“Essa nova cultura se mantém pura porque não permite que entre nela nada estranho ou sujo que possa contaminá-la. A pessoa deve abandonar tudo para fazer parte dela”, explicam para captar adeptos. Eles mesmos se definem como um novo movimento que está surgindo em diversos pontos do planeta e que, quando chegar a hora, “quando a comunidade for perfeita e pura, Yashua voltará e limpará a terra de todo vestígio da velha cultura”.

A fazenda das Doze Tribos em San Sebastián fica escondida no alto do monte Ulía, perto de um penhasco que dá para o mar Cantábrico. Aqui vivem cerca de 30 pessoas com famílias. Há desde um homem de 40 anos que sempre gostou de “viver em irmandade” até um ex-presidiário arrependido de sua vida anterior. A convivência é rigorosamente regulamentada. Levantam-se ao amanhecer, enquanto um deles toca violão e canta de quarto em quarto. A oração e o trabalho marcam o dia-a-dia dos irmãos. Fabricam pão que depois vendem em uma loja ecológica que administram no centro da cidade. Todos adotam um nome hebreu ao entrar na comunidade.

Para “evitar tentações”, as mulheres não se depilam e vestem roupas largas. Os homens usam barba espessa e prendem o cabelo em um rabo. Guil (nome fictício), cerca de 50 anos, é o único solteiro da casa. Afirma que há poucos anos levava uma vida frívola. Drogas, sexo e álcool. Puro rock’n'roll. Agora mudou, encontrou “a luz”. Simpático e de aspecto bonachão, duvida que o visitante saiba o que é o amor verdadeiro. “Na realidade é isso que…” e deixa as palavras no ar. Remexe os dedos buscando a definição. Não a encontra. “Coisas da droga”, diz diante de um chá quente.

Depois senta-se Hanock, um jovem robusto com mulher e vários filhos. Para ele está claro que a educação na comunidade é a melhor que podem dar às crianças. “Para que ir ao colégio? Ali eles dizem que o homem vem do macaco, coisa ridícula. Ou que os homossexuais são pessoas normais.” Fala tranquilamente e com certo ar poético. Hanock (também identidade fictícia) não gosta que lhe digam que bate em seus filhos, mas prefere referir-se a esse fato como “uma instrução”. “Simplesmente não os deixamos à vontade. As crianças quando nascem são egoístas e só pensam nelas. Não devem ter tempo para pensar nem fantasiar. O demônio se apodera facilmente delas”, explica.

As crianças, segundo o testemunho dos que conviveram com eles, são açoitadas com uma vara de madeira nas mãos ou nas nádegas por desobedecer aos pais. “E para que ler outro livro que não seja a Bíblia? Não contribuem em nada para nossa convivência”, acrescenta.

Às 7 em ponto da tarde se reúnem no andar de cima. Momentos antes que comece a “minja”, a cerimônia religiosa em honra a Yashua, Guil continua procurando em sua cabeça o que é o amor, sem sucesso. Em um pequeno salão, os membros se colocam em círculo, adultos e crianças. Zacarias, um líder dessa comunidade, começa a tocar violão. Alguns entram no círculo e se dão as mãos. Dançam em ziguezague. Depois refletem sobre o que leram nesse dia na Bíblia ou simplesmente sobre algo que lhes ocorreu.

“Esta manhã eu senti inveja. Senti algo muito ruim, muito ruim. Senti a chamada do maligno, mas o rejeitei”, expõe uma mulher com sotaque estrangeiro. Um homem relata um versículo que lhe agrada. Guil fala. E por fim encontra a tecla: “O amor é dar a vida pelos outros”. Sorri satisfeito.

A comunidade, que não consta como entidade religiosa no registro do Ministério da Justiça, tem lojas de produtos naturais, carpintaria, gráfica, instalação de painéis solares e distribuição de sal artesanal do sul de Portugal. Também participam de feiras medievais. Foi onde os conheceu um ex-membro que prefere manter o anonimato. Demorou apenas uma semana para ir morar na casa de San Sebastián com sua mulher e uma filha. Isso faz sete anos. Batizou-se com sua família em uma imersão em água, como devem fazer os membros ao ser aceitos. Anos depois ele se cansou de ser “manipulado”. “Lá não há liberdade. Eles o controlam completamente”, diz. Hoje não quer falar muito do assunto, está cansado. Ele abandonou a casa com sua família, mas sua mulher e sua filha voltaram para lá. Ele está resignado agora que vive só e não as vê quase nunca.

Miguel Perlado é o presidente da Unidade de Cuidados e Investigação de Socioadições (AIS), uma entidade privada que funciona há 35 anos. Tratou diversas vezes com ex-membros das Doze Tribos. Na opinião dele, o que os transforma em um grupo de risco é a vida em comunidade que realizam, e assim conseguem que o controle do grupo seja mais “férreo” e que o adepto seja “pouco acessível para sua família”. “Toda a estrutura da comunidade e seu funcionamento correspondem a uma seita coercitiva”, explica. “Nas crianças, essa forma de vida cria mais problemas. Têm unicamente um critério aprendido lá dentro. O controle da informação é total. Tudo é público, o líder conhece as experiências de todos, seus medos, suas culpas. Não se tende a respeitar a individualidade da pessoa”, afirma Perlado.

As conversas no grupo entre os adeptos, quando contam suas experiências cotidianas, parecem para ele “uma terapia muito selvagem”. “Tendem a lhe dar todo um sentido muito culpabilizante. Preocupa muito a mistura de crianças e adultos nessas conversas.” Perlado também conta que o grupo dá muita ênfase a contar com mulheres, pois elas podem ter descendência e garantir a sobrevivência do grupo. Por isso o conflito entre casais que estão lá dentro surge quando a mulher quer ficar e o homem sair, como ocorre frequentemente.

Esse foi o caso de outro ex-membro que também não quer dar seu nome para esta reportagem, apesar de ter contado sua vivência em fóruns na Internet com nome e sobrenome. É a história de uma luta para tirar seu filho das Doze Tribos. Entrou para ela com sua parceira, que iam chamar de Magdalena, com um bebê dos dois e dois filhos dela, frutos de relações anteriores. Poucos meses depois de entrar, ele, que pede para ser chamado de Naky, quis sair. Magdalena se opôs. Houve acusações mútuas. Finalmente ela aceitou. “Entre seus filhos e Yashua, quem você escolheria?”, lhe perguntaram os membros das Doze Tribos quando Magdalena disse que ia embora. E lhe lembraram o sacrifício de Abraão, sua mão segurando um punhal sobre o pescoço de Isaac, seu primogênito. Se você escolher seus filhos é que não serve para cuidar deles, disseram à mulher, que alguns dias antes tinha decidido abandonar a comunidade com seus três filhos.

Lá fora Naky a esperava. “Quando os bebês choram, eles os amordaçam e seguram pelos braços para reduzir sua personalidade desde muito pequenos. Batem neles a partir dos 6 meses, eu vi isso. É realmente uma lavagem cerebral. Não queria que meu filho fosse um robô.” E termina: “Foi um pesadelo que finalmente acabou. Agora queremos começar do zero, uma vida nova”. A última casa em que Magdalena esteve foi nas proximidades de Pravia, em um terreno agrícola de 5 hectares.

O único fato conhecido nessa casa é a denúncia que um vizinho apresentou em 2006 e deu origem à investigação da Promotoria de Menores. O morador os acusou de ser uma seita e não ter as crianças escolarizadas. Nessa época, os serviços sociais de Astúrias realizaram um relatório, ao qual este jornal teve acesso, que explica o seguinte: “Os menores convivem com seus pais com um forte ideário e uma vida muito entremeada pela forte carga ideológica e religiosa e as normas da comunidade. Embora se avalie que as necessidades básicas das crianças estão cobertas, não se verifica uma situação de risco”.

A Guarda Civil recomendou realizar um exame psiquiátrico nas crianças sem escolarização. Depois, um psicólogo do Instituto de Medicina Legal de Astúrias examinou as crianças e concluiu o seguinte: “Não se pode acreditar que os menores, recebendo a educação alternativa que seus pais e o entorno social lhes dispensam e os valores morais implícitos nesses ensinamentos, sofram qualquer tipo de sintomatologia ou transtorno que possa ser atribuído a qualquer tipo de manipulação”. Diante desses relatórios, a promotoria arquivou o caso em 2006.

O relatório fazia referência a que as Doze Tribos utilizam recursos sanitários alternativos. Quase não consultam médicos. Em 2001 na França dois de seus membros foram condenados pela morte de um menino, que sofria de cardiopatia congênita, ao qual negaram a medicina moderna. Pelo menos na Espanha algumas famílias começaram a vacinar seus filhos.

O promotor público andaluz José Chamizo também abriu uma investigação. Os serviços sociais da prefeitura de Nerja visitaram a casa da comunidade e não verificaram qualquer risco para os menores. Um porta-voz do defensor público diz que “não levá-los ao colégio não representa obrigatoriamente um caso de descuido”.

Os meninos do grupo trabalham com seus pais no campo. As meninas costuram e ajudam a fazer comida em San Sebastián. Também não vão à escola. Seus pais preferem educá-los em casa. Um exemplo é o líder Spriggs, que define o raciocínio como “uma influência demoníaca da alma”. “Que sorte têm as crianças”, diz Guil, o solteiro. “São puras, diferentemente de nós, que fomos criados fora.” Acredita que elas, “livres de pecado”, poderão receber imaculadas o Messias. Um porta-voz do Conselho de Educação do governo basco indica que não lhe consta que no povoado haja crianças sem escolaridade. “Quando houver algum tipo de denúncia será autuada”, esclarece.

As quatro comunidades das Doze Tribos serão uma só em breve, pois os dirigentes concordaram em vender as terras onde estão atualmente para se instalar nas proximidades de Girona. Em outros países o grupo teve mais problemas. Há três anos foram investigados na França por uma comissão parlamentar, diante da preocupação sobre a escolarização. Os deputados afirmaram que as crianças “não eram capazes de explicar o sentido do que leem”. O presidente da comissão francesa, ao visitar a casa, declarou que teve a sensação de se encontrar com Natasha Kampusch, a jovem austríaca que foi retida por um indivíduo desde menina em um porão. Em 2004, o Estado de Nova York sancionou duas comunidades por exploração infantil, enquanto na Alemanha vários de seus membros foram detidos pelo tratamento dado aos menores.

“São a seita mais destrutiva que existe hoje na Espanha. Infringem a Constituição”, opina Juantxo Domínguez, conselheiro socialista de Pasaia (Guipúzcoa) e presidente da Redune, associação de âmbito estadual para prevenção da manipulação sectária. Há 13 anos trabalha com pessoas que saem das Doze Tribos. Considera o grupo “totalitário e perverso com os menores”. Um rapaz estrangeiro que chegou a Valência há sete anos como aluno da Erasmus entrou em contato com Domínguez. Acabou envolvido com o grupo. Entusiasmou-se por seu modo de vida simples. Deixou tudo, contra a opinião de seus parentes. Tudo foi bem até o dia em que decidiu sair, onde o esperava “a morte eterna”. O trataram como um Judas, conta Domínguez. Ao vê-lo, seus pais pensaram que viesse de um campo de concentração nazista. Esse jovem não quis dar declarações porque diz que vai denunciar a comunidade por manipulação, embora sua advogada explique que não mexeu no assunto por enquanto.

Depois de uma vereda sinuosa junto à Río Seco, em Nerja, um cartaz com flores pintadas dá as boas-vindas aos visitantes. Mas uma vez lá dentro os seguidores do apóstolo Spriggs se mostram hostis com os jornalistas. Um homem forte com sotaque andaluz e longos cabelos diz que não quer falar com a imprensa. “Daqui para lá, nós”, ele diz, mostrando a cancela que dá para a rua. “A partir daí, vocês.”

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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